domingo, 17 de maio de 2009
O Natal é todos os dias
O ritual tinha-se instalado de forma imperceptível. Todas as noites o pai entrava no quarto do filho para ler uma história ou um capítulo de um livro em jeito de boa noite. O petiz habituara-se rapidamente a viajar pelas paisagens dos contos infantis, ao som da voz pausada e agradável do pai. Tinha agora dez anos e a memória estava povoada com as histórias clássicas do capuchinho vermelho, dos três porquinhos, da bela adormecida, as fábulas de La Fontaine, dos tradicionais contos portugueses e outros que a fome da curiosidade teimava em consumir. De ávido ouvinte passou também a interessado contador, alternando com o pai na leitura das narrativas. Vezes sem conta o enredo era transformado em texto teatral, fazendo ambos a devida interpretação das personagens, por recurso à imaginação, para gaúdio dos participantes é, às vezes, dos familiares espectadores. O Natal e os aniversários costumavam ser um mercado de abastecimento de material para as noites de leitura. Os livros eram prendas habituais e certeiras desde que não se desse o caso de haver repetições desnecessárias. Naquele Natal não ia ser diferente, pensava o miúdo, que há muito tinha deixado de acreditar no Pai Natal dos centros comerciais que entrava pelas chaminés durante a noite para deixar os presentes. A história não batia certo! À medida que se aproximava o dia iam crescendo silenciosamente os embrulhos debaixo da árvore carregada de frutos luminosos coloridos. Ao contrário de outros anos os embrulhos tinham engordado para além das medidas normais dos livros que costumava receber. Achou estranho, mas reprimiu a ansiedade e evitou as perguntas e as perfurações das embalagens. Na noite de Natal depois do jantar, o rapaz, filho único, começou a receber as prendas. Dos tios e primos, roupa, sapatos, uma bicicleta; dos avós maternos recebeu dinheiro; dos paternos recebeu um computador e um DVD portátil como prémio por ter concluído o quarto ano com distinção. O miúdo esforçava-se por retribuir com o prazer que lhe queriam ver estampado no rosto. E os livros? Restava a esperança do bom-senso dos pais. As medidas do último pacote que agora tinha nas mãos não lhe davam quaisquer sinais. Abriu. A caixa preta dizia ser uma playstation 3, daquelas que punham aos pulos os seus colegas de escola. Sorriu, de forma ambígua, para que ninguém lhe notasse a desilusão. Já tarde deitou-se na cama com um livro de antigos natais, aberto ao calha, à espera que o pai cumprisse o ritual da leitura, para lhe suavizar a angústia de um dia esquisito. Nessa noite o pai não foi, convencido que a avalanche de prendas tinham arrastado para o sono o seu pequenote.
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